Referendo condenado
Na Áustria não há casamento para pessoas do mesmo sexo. Só em 2010 foram reconhecidas as uniões de facto homossexuais. Mas a possibilidade de coadoção, já existente para casais hetero, foi em outubro estendida aos casais homo – tornando o país o 13.º da Europa a permiti-la. Porquê? É simples: fora em fevereiro condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) por negar a um casal de mulheres em união de facto a possibilidade de uma adotar o filho biológico da outra.
Considerando que a Áustria, cujos tribunais recusaram o pedido do casal para iniciar um processo de coadoção, estava a violar os artigos 14.º e 8.º (proibição da discriminação e direito ao respeito pela vida privada e familiar) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o TEDH concluiu que o respetivo Governo “não tinha conseguido demonstrar de forma convincente que excluir a coadoção num casal do mesmo sexo, embora permitindo-a num casal de sexo diferente em união de facto, era necessário para a proteção da família, entendida no sentido tradicional da proteção do interesse da criança. A distinção [entre os dois tipos de casal] é portanto incompatível com a Convenção.”
As decisões do TEDH não obrigam os Estados a mudar a lei, mas é costume acontecer: afinal, são signatários da Convenção e reconhecem a soberania do tribunal. Assim, a Áustria fê-lo. O mesmo não fizeram, porém, os outros quatro países mencionados no acórdão como comungando da mesma violação (permitir a coadoção em casais hetero em união de facto e não a casais homo): Rússia, Ucrânia, Roménia e Portugal. Apesar de o TEDH enfatizar que é o princípio e não o caso concreto que está em causa: “A presente decisão não tem a ver com a ideia de que o pedido de coadoção dos queixosos deveria ter sido atendido; tem a ver com a discriminação de que foram alvo por os tribunais não terem tido oportunidade de examinar realmente se a coadoção requerida era do interesse da criança, já que foi declarada legalmente impossível.”
Não é a primeira decisão de tribunais europeus a tornar claro que, como o TEDH disse em 2002 a propósito destes temas, “os Estados não têm carta-branca para exercer poder arbitrário”. Uma advertência que deve ser dificilmente compreensível a uma maioria que se especializou na arbitrariedade, no desrespeito pela Constituição e no insulto ao Tribunal Constitucional, e que só ajoelha perante as decisões europeias que mandem reduzir défice e aumentar austeridade. Mas não nos equivoquemos: o primeiro-ministro que em 2010 dizia achar que a proibição de adoção para casais homossexuais é inconstitucional pode estar-se nas tintas para os princípios, não ter uma pinga de vergonha e achar incompreensível a noção de direitos fundamentais e decisões neles baseadas, mas não quer um referendo. Só quer empatar e poder dizer aos integristas conservadores cujo apoio deseja que fez tudo o que estava ao seu alcance. E, brinde, passar a batata quente a Cavaco.
Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 24 janeiro 2014
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